segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Foste o que já não és

Custa tanto acordar de um sonho lindo que alimentou o nosso corpo e a mente, amanhecendo envolvido num turbilhão, de incertezas, de desconfiança, por nos sentirmos traiçoeiros com os que em tempos considerávamos afáveis, onde depositávamos intensamente o que julgávamos ser amor incondicional, mas que não era mais que um apego levado lentamente pelo tempo com a ajuda do vento para a obscuridão de onde surgem apenas vestígios daquilo que um dia chamámos reino maravilhoso onde se partilhava como irmãos, se ria às gargalhadas, brincando nas ruas cobertas de palha, jogando com jogos bárbaros cujo prazer enchia o corpo e a alma, no prado rejubilando com o primitivo ornamento, e hoje chora em silêncio aquele charme roubado pelo poder local, porque já era pequeno para muitos, e agora é imenso para tão poucos, sentindo-se tão só e abandonado, traído e martirizado pelos caprichos de gente com coração de “fraga” destruidores de sonhos, como ditadores antigos, que pedra a pedra mandou retirar a fonte do Espinheiro, onde começaram tantos namoros que acabaram em casamentos, lugar sagrado onde nos ares flutuava amor, carinho, amizades, beijos roubados, até que caiu a sentença de Salomão, mesmo oferecendo-lhe outras opções, demolir figurava no instinto de uma pessoa, que mandou esconder as pedras para que a revelia ficasse sem argumentos para manifestar desacordos.
Eras a terra que fazia bater corações, que acolhia e tratava os convivas com dignidade carinhosa, onde se vivia em comunidade sem complexos nem preconceitos. Chamava-te a minha terra e hoje penso que não és a terra de ninguém, apenas uma Aldeia na encosta da serra da Nogueira, vigiada e protegida pela senhora da serra. Quem abandona, sejam quais forem as razões, corta o direito de lhe chamar seu. Os teus famosos bairros ficarão eternamente nos anais dos que lá viveram ou que por perto passaram. O da Chave que tantas portas abriu, mas a fechadura ruiu tornando impotentes os que tentam ainda teimosamente entrar construindo ninhos de beleza que só ouvem as badaladas do sino, que melancólico recorda tempos passados. A Portela bairro escolar onde as aventuras se sucediam, na eira do tio Amadeu, na encosta da tia Laura, ou em volta da casa do tio Hermenegildo onde o Juiz e o Amancio discordavam sempre só para meter ferro, nas escadas da tia Dulce onde nos assentávamos a saborear o sol frágil de manhã ou o ardente da tarde envolvidos em” landonas”, sem graça, mas engraçadas, O do Outeiroconsiderado snob e pouco frequentado, felizmente existia a eira do tio Zé Suca para grandes jogos de futebol. O bairro das pedras passagem obrigatória para quem quer seguir para a estação onde o tio Azevedo esperava para passar o bilhete para a grande máquina a vapor. Também a eira do tio António Piloto foi palco de imensos jogos de roda, cantos e danças ao som do tear da tia Irene, para cá para lá. O cruzeiro é a nossa obra envergonhado por estátuas que escultores improvisados realizaram pior que os bonecos do Sr. Oleiro da 3ª classe. Ó terra que tanto amei, e sofri longe ou perto de ti, perdoa esta cobardia, porque o meu coração deixou de sentir o que sentia, o meu olhar deixou de penetrar nas casas e nas pessoas, vagueia por desconhecidas orações, e morre no que um dia começou.

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