quarta-feira, 29 de março de 2023

I — O abade Myriel Em 1815, era bispo de Digne o reverendo Carlos Francisco Bemvindo Myriel, o qual contava setenta e cinco anos de idade, e que desde 1806 ocupava aquela diocese. Embora seja estranho ao enredo desta história, não será demais referir, ainda que não seja senão para sermos exactos, os diversos boatos e conversas que Ɵnham circulado a seu respeito, quando da sua chegada à diocese. Verdade ou não, o que se diz a respeito dos homens, ocupa muitas vezes na sua vida e, muito mais, no seu desƟno, um lugar tão importante como o mesmo que eles têm. Segundo se dizia, Carlos Myriel era filho de um juiz da Relação de Aix (aristocracia de toga) que, tendo-o desƟnado para sucessor do cargo que exercia, o casara muito novo ainda, apenas com dezoito ou vinte anos, como é costume em famílias pertencentes à magistratura. Apesar de casado, Carlos Myriel, pequeno de estatura, mas de agradável presença, elegante e muito espirituoso, dera, ao que constava, bastante que falar de si, por conƟnuar dedicando a sua existência aos prazeres mundanos. Rebentou a revolução e os acontecimentos precipitaram-se rapidamente; as famílias dos magistrados dizimadas, expulsas, perseguidas, fugiram. Logo nos primeiros dias da revolução, Carlos Myriel emigrou para Itália, onde sua mulher sucumbiu, devido a uma afecção pulmonar de que há muito sofria, deixando-o sem descendência. Que se passou depois disto na vida de Carlos Myriel? Dar-se-ia o caso da ruína da anƟga sociedade francesa, a decadência da própria família, os trágicos acontecimentos de 93, talvez ainda mais pavorosos para os emigrados que os viam de longe aumentados pelo terror, lhe terem feito germinar no espírito ideias de solidão e de renúncia? Teria sido no meio das afeições e distracções em que ocupava a vida, alcançado subitamente por algum desses terríveis e misteriosos golpes, que às vezes vão direitos ao coração e fazem derribar o homem que as catástrofes públicas, mesmo ferindo-lhe a existência e a fortuna, não seriam capazes de abalar? Era impossível dizê-lo; o que se sabia é que, quando regressou de Itália, vinha padre. Em 1804, Carlos Myriel, já de idade avançada, era pároco da igreja de Brignolles e vivia na mais completa solidão. Por ocasião da coroação teve de ir a Paris por causa de uma pequena pretensão, a que andava ligado o interesse da sua paróquia. Entre as pessoas de influência, cuja protecção solicitou em favor dos seus paroquianos, contava-se o cardeal Tesch. Num dia em que o imperador foi visitar seu Ɵo, encontrou-se na passagem com o digno eclesiásƟco, que aguardava na antecâmara ocasião oportuna para ser admiƟdo à audiência. Napoleão, notando a insistência com que aquele velho o observava, voltou-se de repente e perguntou: — Quem é este homem que não deixa de olhar para mim? — Sire — disse Myriel — Vossa Majestade reparou num pobre insignificante, eu olho para um grande homem. Podemos ambos aproveitar. Nessa mesma noite, o imperador perguntou ao cardeal o nome do abade e, pouco tempo depois, Carlos Myriel, surpreendido, recebeu a noơcia de que havia sido nomeado bispo de Digne. Até que ponto, porém, era verdade o que se dizia relaƟvamente à primeira parte da existência daquele homem? Ninguém o sabia, porque poucas famílias haviam conhecido a dele antes da revolução. Apesar de bispo e mesmo por o ser, Myriel teve de resignar-se à sorte de todas as pessoas que chegam a uma cidade pequena, onde é maior o número de bocas que falam do que cabeças que pensam. No fim de tudo, porém, as conversas em que o seu nome andava envolvido, não passavam de boatos. Fosse como fosse, decorridos nove anos de episcopado e de residência em Digne, todos esses mexericos, que nos primeiros tempos são o objecto constante das conversas entre o povo das terras pequenas, caíram em tão profundo esquecimento, que já ninguém ousava repeti-los, nem sequer recordar-se deles. O reverendo Myriel veio para Digne acompanhado de sua irmã BapƟsƟna, mais nova do que ele dez anos e uma criada da mesma idade da irmã, chamada Magloire, a qual passara a exercer as duplas funções de criada grave da senhora e dispenseira do novo bispo. Alta, magra, pálida, delicada e afável, BapƟsƟna, embora se não pudesse chamar o Ɵpo da mulher veneranda, porque para isso era necessário que fosse mãe, realizava, todavia, a mais completa expressão da palavra respeitável. Nunca fora bonita, mas a sua existência, que se resumia numa longa série de obras de caridade, revesƟra-se, por fim, de uma espécie de alvura luminosa que lhe dava, depois de velha, aquilo a que poderemos chamar a beleza da bondade. O que na sua mocidade fora magreza, tornouse na velhice em transparência, através da qual, como de um véu, se entrevia um anjo. Era em si mesma mais que uma virgem, era uma alma. O seu vulto parecia feito de sombra; apenas o corpo necessário para determinar o sexo; era pequena porção de matéria contendo uma chama celeste; olhos grandes e sempre fitos no chão, um pretexto para uma alma andar na terra. Magloire era uma velhinha baixa e muito gorda, sempre atarefada, sempre arquejante, não só por efeito da sua muita acƟvidade, mas em consequência dos seus padecimentos asmáticos. Apenas chegou a Digne, o novo prelado tomou posse do palácio episcopal, com todas as honras concedidas pelos decretos imperiais, que classificam o bispo imediatamente após o marechal de campo. O maire e o presidente foram logo cumprimentá-lo, e ele, por sua vez, fez o mesmo ao general e ao prefeito. Depois de ver o novo prelado estabelecido no governo espiritual da diocese, a cidade esperou pelos seus actos. II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bemvindo O paço episcopal de Digne estava situado junto do hospital, era um vasto ediİcio de pedra de cantaria, mandado construir no princípio do século passado por Monsenhor Henrique Puget, doutor em teologia pela faculdade de Paris, abade de Simore e bispo de Digne em 1712. Este ediİcio era um verdadeiro domicílio senhorial, em que tudo respirava grandeza; os aposentos parƟculares do bispo, os salões, os quartos, o amplo páƟo de recreio com o seu claustro em volta, segundo a anƟga moda florenƟna e as magníficas árvores do jardim. Na sala de jantar, uma extensa e sumptuosa galeria no rés-do-chão, cujas janelas davam para os jardins, Ɵvera lugar o solene banquete oferecido pelo bispo Puget em 29 de Julho de 1714, ao arcebispo príncipe de Embrun, Carlos Brulaít de Genlis, António de Mesgrigny, capuchinho, bispo de Grasse, Filipe de Vendome, grão-prior de França, abade de Santo Honorato de Lérins, Francisco de Berton de Grillon, bispo-barão de Vence, César de Sabran de Forcalquier, bispo e senhor de Glandeve e a Jean Soanen, da congregação do oratório, pregador ordinário do rei e bispo e senhor de Senez. A sala achava-se decorada com os retratos destes sete reverendos personagens e em cima de uma mesa de mármore branco via-se gravada em letras de oiro a memorável data de 29 de Julho de 1714. O hospital era um pequeno edifício de um só andar, com um jardinzinho. Três dias depois da sua chegada, o bispo foi visitar o hospital. Terminada a visita, pediu ao director que o acompanhasse ao paço. — Senhor director — perguntou-lhe — quantos doentes tem a seu cargo? — Vinte e seis, Monsenhor. — Foi os que contei — disse o bispo. — As camas estão muito apertadas e juntas. — Também reparei nisso. — As enfermarias são muito pequenas e têm falta de arejamento. — Também me pareceu. — E o jardim mal chega para os convalescentes passearem quando está bom tempo. — Assim é, com efeito. — Em ocasiões de epidemias, como este ano, em que e houve muitos casos de Ɵfo, não sabemos como acomodar os doentes. — Também me ocorreu isso. — Mas, senhor bispo, não podemos fazer outra coisa senão resignarmo-nos — concluiu o director. Esta conversa desenrolava-se na sala de jantar ou galeria do andar térreo. Após um momento de silêncio, o bispo voltou-se de repente para o director e perguntou-lhe: — Quantas camas lhe parece que poderão caber nesta sala? — Na sala de jantar de V. Ex.ª?! — exclamou o director, estupefacto. Entretanto, o bispo correu a vista pela sala, como quem mede e calcula as distâncias e disse como que falando consigo próprio: — Podem aqui caber vinte camas à vontade! — E em seguida acrescentou, elevando a voz: — Senhor director, é evidente que há aqui um grande erro. O senhor tem vinte e seis pessoas em cinco ou seis quartos pequenos. Nós aqui somos três e temos lugar para sessenta. Repito que há erro! O senhor ocupa a minha casa e eu vou ocupar a sua. Façamos, pois, a troca. No dia seguinte, os vinte e seis pobres que naquela ocasião estavam doentes, eram transportados para o paço episcopal e o bispo mudava a sua residência para o hospital. Myriel não possuía bens de fortuna, pois a revolução arruinara completamente a sua família. A irmã Ɵnha uma pensão vitalícia de quinhentos francos, a qual, enquanto Myriel fora pároco, bastava às suas despesas pessoais, e ele, como bispo, recebia do Estado uma dotação de quinze mil francos. No mesmo dia em que fixou a sua residência na casa que era dantes o hospital, determinou duma vez para sempre o emprego desta quantia, escrito pelo seu próprio punho da seguinte maneira:Durante todo o tempo do seu episcopado, o virtuoso prelado não fez a menor alteração nestas disposições, a que ele, como se viu, dava o nome de distribuição das despesas da minha casa. BapƟsƟna aceitou com a mais completa submissão a vontade do irmão. Para a virtuosa senhora, Myriel era não só seu irmão, mas seu bispo, seu amigo segundo a natureza, seu superior segundo a igreja. Amava-o e venerava-o inteira e simplesmente. Obedecia, quando ele ordenava e aderia às suas menores vontades sem fazer a mais leve observação. A criada Magloire é que não Se conformou inteiramente com semelhante distribuição, por ver que o bispo só reservava para si mil francos, os quais, reunidos à pensão de BapƟsƟna, perfaziam a soma de mil e quinhentos francos anuais, único rendimento com que os três tinham de viver. E não só viviam, com efeito, como até quando algum pároco de aldeia vinha à cidade, o bispo ainda achava modo de hospedá-lo, graças à severa economia de Magloire e à inteligente administração de Baptistina. Uma ocasião, três meses decorridos, depois da sua chegada a Digne, o bispo disse: — Apesar de tudo, sabe Deus como eu vivo constrangido! — Isso vejo eu! — exclamou Magloire. — Se Monsenhor nem ao menos requisitou à Câmara o subsídio que foi sempre costume dar aos bispos, para despesas na cidade e gastos de jornadas nas visitas do bispado! — Parece-me que tem razão, Magloire — disse o bispo. E fez a reclamação. Passado algum tempo, a Câmara, tomando em consideração o seu requerimento, votava-lhe a quanƟa anual de três mil francos, sob a seguinte rubrica: Subsídio ao senhor bispo para prover às despesas de estado e às das visitas pastorais. Não foi preciso mais para excitar as conversas da burguesia local, e para que, por essa ocasião, um senador do império, anƟgo membro do Conselho dos Quinhentos, parƟdário do dezoito brumário e provido numa pingue senatoria nas proximidades da cidade de Digne, escrevesse ao ministro dos cultos, Bigot de Préameneu, uma carta confidencial em termos irritados, da qual extraímos as seguintes linhas, cuja autenticidade garantimos:

Sem comentários: